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Lula e Copacabana

Depois que levou seis vaias sucessivas da população carioca em julho de 2007, no Maracanã, por ocasião da abertura dos Jogos Pan-Americanos, o mandatário Lula sempre que pode arranja uma laminha para propagar obras nos morros do Rio de Janeiro. Amparado nos cálculos estratégicos do setor de marketing, o presidente-operário pretende com tal atitude, ainda que limitada, confrontar ou quebrar a resistência da classe média carioca hostil aos desmandos do seu governo, que se acumula, de resto, a cada novo escândalo.

No início deste mês, anunciando obras de urbanização que integram o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) - que a oposição chama, acidamente, de Plano de Aceleração da Corrupção -, Lula, guarnecido por milhares de seguranças no Complexo do Alemão, improvisou as seguintes palavras: “Quero contribuir para mudar a imagem do Rio de Janeiro, contribuir para quando um pobre, seja branco ou negro, dos morros do Rio descer para ir à Praia de Copacabana, não inventem que ele está fazendo arrastão, não inventem que ele é bandido. Ele é um homem que tem direito de tomar banho na Praia de Copacabana e em qualquer praia”.

Vamos aos fatos. Em 1992, depois bater as calçadas do mundo em busca de cenário adequado para escrever um romance sobre a miscigenação racial, que mais tarde viria se chamar “Brazil” (Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1994), o escritor norte-americano John Updike escolheu a praia de Copacabana como posto de observação. Sua idéia era laborar uma narrativa sobre a busca da felicidade, inspirado na lenda medieval de Tristão e Isolda, um jovem casal que se encontra de forma inusitada e se apaixona em meio aos obstáculos políticos e sociais os mais diversos.

Assim, hospedado no Copacabana Palace, depois de muito ziguezaguear pelas areias, ladeiras, ruas e botecos do bairro, o prestigiado escritor anotou: “Basta de procurar. É neste cenário que vou situar a narrativa do meu Tristão negro e pobre e da minha Isolda branca e rica. Convive-se aqui com a maior democracia racial do mundo e ela representa o pano de fundo perfeito para o que pretendo escrever”.

Bem, não sou nenhum John Updike, mas tenho consciência desta verdade elementar desde março de 1963, quando, pela primeira vez, me instalei em Copacabana, considerada então como a “Princesinha de Mar”. Já naqueles tempos o bairro era um amálgama de raças e classes sociais, pretos e brancos, ricos e pobres, velhos e crianças, todos reunidos em seus 7,84 km2, se amando uns e se detestando outros, capazes dos gestos mais sublimes e dos atos mais sórdidos – como é próprio da raça humana, em qualquer tempo ou lugar.

No histórico, depois da transferência da capital federal para Brasília, principal centro de escândalos e malandragens que acodem o país, Copacabana perdeu sua majestade. Desapareceram lentamente as boates, os restaurantes de luxo e os magazines sofisticados. O bairro tornou-se o paraíso da comida a quilo (no que se diz precursor), do comércio pirata, dos passadores de droga, dos botequins “pés-sujos”, mantendo firme a velha tradição do trottoir dos travestis e das prostitutas – embora a “Help”, cartão postal da prostituição internacional, tenha os seus dias contados.

Pelos dados estatísticos, transitam diariamente por Copacabana em torno de 300 mil pessoas, muitas delas acomodadas na maior oferta de quartos de hotéis da cidade. Com pouso fixo nos seus 100 quarteirões convivem – bem ou mal – aproximadamente 172 mil pessoas, uns ocupando decadentes apartamentos de “luxo”, outros se acotovelando em quitinetes tipo cabeça-de-porco, boa parte (25% delas) morando nos barracos de sólida alvenaria do complexo integrado do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho e do entorno dos morros da Babilônia, Cabritos e Chapéu Mangueira – onde Benedita da Silva, a estrela carioca do PT e ex-governadora do Rio, construiu mansão de alto luxo.

Entre os habitantes do bairro, os pardos e pretos formam 58% população. Os demais moradores, 42% restantes, são constituídos de brancos, branquelos, índios e amarelos. O escoadouro natural de toda essa gente é a larga faixa de areia entre o mar (quase sempre poluído) e o paredão de prédios da Avenida Atlântica, numa extensão de praia que liga o Forte às Pedras do Leme.

É ali que, nos dias úteis ou feriados, além de irem à igreja, trabalhar e estudar, milhares e milhares de pessoas se aglomeram, caminham no calçadão, dormem ao relento, tomam banho de sol e mar, batucam, cantam, dançam, bebem caipirinha e cerveja em lata, pedem esmolas, assistem mega-espetáculos de rock, jogam conversa fora e alguns, mais atrevidos, cafungam o pó da coca e puxam a erva do diabo. No Posto 4, por exemplo, quarteirão do nobre Copacabana Palace, é mais fácil se contar a presença de cem negros pobres do que a de um só branco rico.

E é fato comprovado: quando a “rapaziada está na pior”, desce das gaiolas (dos morros ou asfalto) e partem para o arrastão e o assalto à mão armada, às vezes fatal - para o desespero da população em geral e dos turistas em particular. Foi a isso que Updike, bom observador, chamou de “a maior democracia racial do mundo”.

Bem, já fiz um filme sobre o morro do Cantagalo e sua população humilde (“Pedro Mico”) e moro em Copacabana há duas décadas. Diante da promiscuidade diária do bairro, a pergunta que me faço e a seguinte: onde diabo Lula foi buscar preconceito social ou de raça em Copacabana, salvo caso isolado? Qual foi o idiota que colocou na sua boca tais tolices demagógicas? De fato, o que se procura com tais palavras é justamente criar o preconceito do pobre contra o rico, do preto contra o branco e do jovem contra o velho. Sem dúvida, a postura é típica do marxismo déranger, fomentado para açular a luta de classe e, depois, estabelecer o império do socialismo populista e explorador das massas.

O que é uma pena, pois Copacabana, ainda que decadente, é um bom exemplo de democracia racial.

por Ipojuca Pontes em 24 de março de 2008 em MidiaSemMascara.org
O autor é cineasta, jornalista, escritor e ex-Secretário Nacional da Cultura.

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