Experiências boemias em Copacabana: Dolores Duran

Dolores Duran

Maria Izilda Santos de Matos 1

Essa pesquisa tem como preocupação rastrear as sensibilidades de Copacabana nos anos dourados, através da trajetória e das canções de Dolores Duran.

Um território: a noite de Copacabana

Dolores Duran

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Experiências boemias em Copacabana:

Dolores Duran

Dolores Duran

Maria Izilda Santos de Matos

Essa pesquisa tem como preocupação rastrear as sensibilidades de Copacabana nos anos dourados, através da trajetória e das canções de Dolores Duran

Praia de Copacabana nos anos 1950

Um território: a noite de Copacabana.

Nos anos 50, Copacabana era o centro da vida da então capital federal e o samba-canção era a moldura do Rio de Janeiro.

Tematizar o bairro de Copacabana dos anos 40 e 50 é resgatar as ambigüidades de novas maneiras de viver, de se ver o mundo, novas formas de ser, de agir e de sentir, aliadas à impessoalidade de certas relações.

Se durante o dia criava-se a sociabilidade na praia e estabeleciam-se novas formas de relação entre os gêneros e novas sensibilidades, à noite, eram em salas pouco iluminadas e enfumaçadas, que pares enamorados se encontravam envoltos na atmosfera da música de piano ou de um cantar sussurrado, que evocavam o amor magoado e a dor-de-cotovelo.

O cotidiano noturno de Copacabana era vivenciado dentro dos bares, restaurantes e boates, que atraíam artistas do rádio e do teatro, a alta sociedade, os cronistas da imprensa, a turma da música popular, políticos e visitantes em férias.

Eram boas opções: o Vogue , o Beco das Garrafas  2o Little Club, o Baccará e o Club de Paris.

As madrugadas no Beco  eram intermináveis; tudo era música, bebida, papo livre, ensaios, promessas, talentos circulando a procura de um apoio.

A música brasileira era a atração principal nas boates, nos pontos de encontros informais da boemia e também nas rádios, ainda no auge da popularidade.

Dolores Duran cantando na noite de Copacabana

Para Dolores Duran a noite começava no Cangaceiro, onde, quando estava especialmente feliz, bebia um coquetel de frutas, mas quando sentia que "a solidão vai acabar comigo" tomava uísque puro.

Lá batia um papo, soltava algumas piadas e depois ia cantar no Little Club , outra boate da área, do mesmo dono do Cangaceiro.

No final da noite, antes de começar outro circuito, "duas cafiaspirinas, uma colher-de-açúcar em um cálice e meio de água" e estava pronta.

Dificilmente dormia antes do início da manhã, cantava até tarde nas boates, prolongava por alguns locais e chegava a ir assistir a primeira missa do dia no Mosteiro de São Bento, sob o fundo musical dos cantos gregorianos.

Como artista e boemia, Dolores se movia com destreza nesse espaço que conhecia como ninguém, identificando-se com esse universo suas regras e formas de expressão que se diferenciavam das do dia, mas nem por isso eram marginais ou desvinculadas dos elementos fundantes da sociedade, como trabalho e família 3

Dolores era reconhecida nas rodas da boemia, suas canções captavam muito desta atmosfera enfumaçada e do samba-canção

A música de Dolores Duran ficou na memória desse território como representação dos anos dourados de Copacabana, em que se vivenciava um clima de pós-guerra com crescente esperança de se redescobrir o ser humano, libertar-se de tabus ancestrais e dependências existenciais, com um querer ultrapassar barreiras, num país assentado numa "tenra democracia" que duraria pouco.

Com rara sensibilidade, ela conseguiu flagrar o mistério sem esclarecê-lo, expressou de forma melódica o que todos sentiam: a paixão, tudo envolto no negro das roupas, dito ou cantado em sussurros, tendo em frente um copo de uísque e celebrando a culpa, o fracasso, os amores impossíveis e a solidão.

Em versos como "Aí a solidão vai acabar comigo", Dolores traduzia toda uma angústia de seu tempo, da dor de amor, da procura de um amor idílico, com uma ânsia de perfeição nunca satisfeita, envolvida numa atmosfera de alegria triste e melancólica, dos olhos perdidos e marejados, de amores de contramão, paixões interditas ou impossíveis, constituindo um dos mais belos momentos da lírica musical brasileira.

Trajetória Melódica

É de manhã
Vem o sol, mas os pingos da chuva
Que ontem caiu
Ainda estão a brilhar,
Ainda estão a dançar...

(Estrada do sol, Dolores Duran e A. C. Jobim)

A trajetória de Dolores Duran como compositora deve ser vista em paralelo à sua carreira de cantora. Adiléia Silva da Rocha, nome de batismo de Dolores, nasceu em 1930, no bairro da carioca da Saúde. Filha de um sargento da Marinha, também viveu em Irajá e Pilares, convivendo com as dificuldades da vida suburbana.

Não conseguiu concluir o curso primário, mas tornou-se uma das mais intuitivas poetisas da música popular brasileira. Sem estudos de canto, consagrou-se como cantora afinada e segura, intérprete sensível de vários gêneros musicais. Com pouquíssimo domínio de línguas, cantava em vários idiomas com pronúncia impecável. Sem nunca ter aprendido mais do que alguns poucos acordes no violão, suas composições apresentam uma melodia inspirada e envolvente.

Começou sua trajetória na música ainda menina, com seis anos, cantando em concursos e festas. Seguindo o caminho comum nos anos 30 e 40, período de ouro do rádio, participou com sucesso de programas de calouros, inclusive o dirigido por Ari Barroso, "Calouros em Desfile", aos domingos na Rádio Tupi  4.

Logo depois concorreu no programa "Escada de Jacó" e passou a integrar sua equipe, apresentando-se em shows de bairros em cinemas, teatros e clubes. Participou ainda de vários outros programas de calouros 5.

Pressionada pelas dificuldades financeiras da família depois da morte do pai, Dolores começou aos 12 anos a trabalhar no rádio-teatro da Tupi, num programa de histórias infantis, o "Teatro da Tia Chiquinha". Atuou, também, em várias peças teatrais, na equipe infantil de Olavo Barros.

Depois de sua participação no concurso "À procura de uma cantora de boleros", no programa Renato Murce, foi convidada a fazer um teste na boate Vogue , na época uma das mais sofisticadas do Rio. Aprovada, obteve um contrato de crooner.

Assim, começava seu trabalho na noite e dessa forma surgia Dolores Duran  6. A jovem profissional tinha apenas 16 anos - com a idade falsificada para poder trabalhar -, mas com sensibilidade e afinação cantava vários gêneros em diferentes idiomas (espanhol, francês, inglês, italiano) e interpretava de forma muito particular as composições de Ismael Neto, Antonio Maria e Billy Blanco, já exibindo seu domínio vocal e improvisações jazzísticas 7, tipo scat singing.

Confirma sua maestria vocal a opinião da própria Ella Fitzgerald, uma expert no estilo, que durante sua passagem pelo Rio de Janeiro, nos anos 50, foi à boate Baccarat  especialmente para ouvir Dolores, que interpretou My funny Valentine (Hodges e Hart), um clássico da música popular norte-americana. Conta-se que Ella Fitzgerald elogiou efusivamente a interpretação.

No início dos anos 50, a canção francesa gozava de muito prestígio no Rio  8, e Charles Aznavour, um dos seus expoentes à época, ao se apresentar na cidade, aplaudiu as interpretações de Dolores no Little Club .

Em 1955, a jovem Dolores foi apontada pela crônica especializada como a melhor crooner do Rio de Janeiro, trabalhou nas boates mais conhecidas do Rio de Janeiro -Vogue, Beguine, Little Club, Baccarat, Casablanca, Acapulco, Montecarlo - e também se exibiu em São Paulo, no Esplanada.

Por várias vezes se apresentou no Uruguai e na Argentina (1955 e 1956). Além de cantar, fazia exímias imitações de cantores de todo o mundo, reproduzindo com perfeição o timbre de voz de cada artista, inclusive dos homens.

Já plenamente reconhecida no circuito das boates, desejava conquistar outro público. A oportunidade apareceu quando César de Alencar a escutou na Vogue  e a levou para a Rádio Nacional, onde se apresentava em seu programa sábados à noite, junto com os mais populares cantores do país. Ingressou também na caravana circense de Paulo Gracindo, em 1956, com a qual percorreu os subúrbios cariocas 9, alternando suas apresentações em boates de luxo, até fora do país, e o picadeiro.

"Verifiquei que, apesar de muito bem tratada pela imprensa, pelos cronistas, não apenas de rádio mas pelos cronistas em geral, na prática minha carreira não progredia. Decidi então dar-lhe um cunho bem popular. Troquei a boate pelo circo. Para falar com franqueza, gosto muito de trabalhar nos circos. Ao contrário do que muitos pensam, isso não desmerece ninguém, e, além de fazer nossas músicas mais conhecidas, nos dá a alegria do aplauso direto do público, um público muito carinhoso, constituído geralmente de pessoas que não têm tempo de comparecer aos auditórios" 10 .

Em 1958, com Nora Ney, Jorge Goulart, Conjunto Farroupilha e outros artistas, excursionou pela então União Soviética, mas em Moscou separou-se do grupo (que seguia para China) e foi para Paris, onde permaneceu por cerca de um mês, apresentando-se num pequeno bar freqüentado por brasileiros.

Sua estréia em disco foi em 1952, gravando dois sambas para o Carnaval de 1953: Que bom será (Ailce Chaves, Salvador Miceli e Paulo Marquez) e Já não interessa (Domício Costa e Roberto Faissal). Em 1953, gravou Outono (Billy Blanco) e Lama (Paulo Marquez e Ailce Chaves).

Os primeiros sucessos vieram dois anos depois, com o lançamento de Canção da volta (Antonio Maria e Ismael Neto) e Bom querer bem (Fernando Lobo). Em 1955 grava Praça Mauá (Billy Blanco) e Carioca (Antonio Maria e Ismael Neto).

Em 1956 consegue um dos seus maiores sucessos como cantora: Filha de Chico Brito (Chico Anísio). Atingindo o público pela simplicidade, cantou peças de vários outros compositores com uma voz afinada e uma interpretação intimista, bem ao estilo dos anos 40/50. Gravou de Billy Blanco: A banca do distinto, Pano legal, Estatuto de boate, Viva meu samba. Também aparecem em sua discografia Coisas de mulher (Chico Baiano), Conversa de botequim (Noel Rosa e Vadico).

Ficou conhecida como intérprete de samba-canção, mas era cantora de múltiplas facetas, graças à versatilidade adquirida como crooner de orquestras, junto às quais cantava de tudo. Em seus discos aparecem desde sambas bem-humorados, baiões, até músicas estrangeiras (sua gravação de My funny Valentine foi incluída no seu último disco, um compacto duplo gravado ao vivo em São Paulo).

Apesar das recomendações médicas sobre suas fragilidades cardíacas, não refreou os excessos 11. Na manhã de 24 de outubro de 1959, Dolores Duran chegou a sua casa nas primeiras horas do dia, depois da uma apresentação no Little Club  e uma esticada na noite. Conversou com a empregada, dizendo: "Não me acorde. Estou muito cansada. Vou dormir até morrer", e foi para o quarto. À noite foi encontrada morta, vítima de um colapso cardíaco.

A morte prematura, aos 29 anos, rompia uma trajetória vivenciada intensamente, que conseguiu captar tanto o mundo à sua volta como apurar a sensibilidade do seu sentir.

Morre Dolores Duran

Uma Falsa Mulher Alegre

Os anos 30, 40 e 50 são conhecidos como a "era de ouro do rádio" no país, destacando-se as emissoras do Rio de Janeiro, entre elas a Nacional, que mantinham a sintonia do Brasil com a Capital Federal, identificada como a "capital do bom gosto", um centro que ditava modas, padrões estéticos, de comportamento e de relações entre os gêneros e de afetividades, valorizando-se o urbano e o moderno. 

Nesse momento as rádios se expandiram por todo o país e passaram a ocupar um espaço cada vez maior na vida das pessoas, informando-as, divertindo-as e emocionando-as, a elas se somavam: a circulação nacional do disco, publicações especializadas, o teatro de revista, o cinema americano e nacional. 

O rádio divulgava um samba que se diversificava rítmica e poeticamente e sofria a crescente influência da música estrangeira, da norte-americana e da latino-americana. Estabelecia-se e generalizava-se um mercado musical, onde a cadência mais tradicional do samba começou a ser substituída, segundo os novos gostos, pelo samba-canção, mais lento, abolerado e centrado na temática da dor-de-cotovelo. Nas casas noturnas teve sua atmosfera ideal, sendo bem recebido por diferentes camadas urbanas, que se identificavam com o intimismo de suas letras e disfarçavam uma atração pelo bolero, nem sempre considerado de bom-gosto.

samba-canção vai gradativamente expandindo sua órbita de ação passando a atingir um público cada vez mais amplo, cantando melodiosamente os dramas, flagrantes amorosos e fragmentos do cotidiano, mostrando toda uma crise de valores e costumes conservadores e denotando as mudanças das relações.

Foi nesse contexto que ocorreu a ascensão de Dolores Duran, cronista da fossa e poeta do cotidiano a dois. Tinha rosto arredondado, os olhos sempre envoltos numa alegre melancolia, dentes da frente ligeiramente separados, corpo miúdo tendendo a engordar, raciocínio rápido e vivaz, jeito meigo e triste. Segundo amigos, alguns deles os cronistas mais respeitados da noite do Rio, era "uma falsa mulher alegre", cativante e aparentemente frágil, mas fortíssima em todos os sentidos.

Dolores Duran enveredava pelo scat singing  12, que interpretava de forma intimista, contribuindo assim para uma virada significativa na forma de cantar e em certa medida prenunciando o estilo bossanovista. Alguns compositores se queixavam, com certo despeito, de que a interpretação de Dolores de suas músicas tornava-se uma verdadeira recomposição, ela as interpretava com muita personalidade, adequada às letras, e não aceitava a orientação de ninguém.

No campo da autoria, Dolores Duran, juntamente com Maysa, foi destaque da década de 50. Pode-se dizer que a partir delas ocorre uma mudança significativa no cenário musical, inicialmente com a própria abertura de espaço para as compositoras, e também por terem imprimido linguagem poética à dor de amor, tema central da suas composições, falando dos sentimentos e ressentimentos femininos.

Era um momento de virada em que já se ouviam os primeiros acordes da bossa-nova, num estilo coloquial, num modo reflexivo de expressar o amor e o desamor, revelando a angústia existencial desse tempo, com uma música urbana marcada pela ambigüidade entre o desejo da mudança frente aos padrões instituídos e uma postura de submissão, pela espera e aceitação.

Dolores Duran compôs poucos sambas-canções, mas mesmo com esse restrito repertório suas composições denotam uma sensibilidade que a aproxima do sublime, sendo inconfundível e marcante, sua poética musical caracteriza-se pelo intimismo, cantando as verdades mais secretas dos corações apaixonados e desiludidos, produzindo versos singelos e sensíveis como os de Noite do meu bem:

Hoje eu quero a rosa mais linda que houver
e a primeira estrela que vier
para enfeitar a noite do meu bem

Suas composições não são homogêneas, pois muitas surgiram num final de noite, numa mesa de boate, escritas com lápis de sobrancelha e um guardanapo ou maço de cigarros, como Fim de caso: "Fim de Caso" foi no Little Club , no Beco das Garrafas .

Não tinha mais ninguém, quase 4 horas da manhã.

Eu cantava em outra boate O Cangaceiro. Saí do Cangaceiro e passei no Little, que pertencia ao mesmo dono. 

Dolores estava sentada, violão no colo e uma folha de papel à frente.

Como sempre, escrevendo com o lápis de sobrancelhas.

Perguntei o que ela estava fazendo e ela só me respondeu: "Pera aí, pera aí, que eu estou terminando um negócio aqui".

E "nasceu" "Fim de caso".13

Também este foi o caso de Por causa de você, letra colocada sobre a música de Tom Jobim (com quem comporia ainda Se é por falta de adeus e Estrada do sol). Declarou Tom Jobim:

Ela era muito sensível, além de muito talentosa.

Das três músicas que fizemos juntos, minha preferida é "Por causa de você", cuja letra deveria ser feita pelo Vinícius de Morais.

Só que Dolores, assim que ouviu a música, escreveu a letra em dois minutos e mandou um recado para o Vinícius, pedindo que a deixasse assim...14

Conta-se que Dolores ouviu Tom Jobim dedilhar uma linda melodia e logo se prontificou a fazer a letra. Encabulado, Tom, não teve como dizer que Vinícius de Moraes já tinha escrito os versos, mas Dolores ficou sabendo e telefonou para Vinícius, que reconheceu que a letra dela era melhor. Assim nascia Por causa de você  15

A inspiração poderia surgir num trajeto noturno, caso de Solidão, composta entre o Alto da Boa Vista e o Beco das Garrafas Dolores, "acometida da canção", parava o carro sob os postes de iluminação aqui e ali e foi compondo.

Ai, a solidão vai acabar comigo
Ai, eu já nem sei o que faço
O que digo
Vivendo na esperança de encontrar
Um dia um amor sem sofrimento
Vivendo para o sonho de esperar
Alguém que ponha fim ao meu tormento
Eu quero qualquer coisa verdadeira
Um amor, uma saudade, uma lágrima
Um amigo
Ai, a solidão vai acabar
Comigo

(Solidão, Dolores Duran)

Considerada a rainha do samba-cançãoDolores também é apontada como uma precursora da Bossa Nova, por seu estilo especial de cantar. Seu público mais fiel foi os amantes da noite, em particular intelectuais e cronistas, muitos dos quais eram seus amigos e admiradores. Esses notívagos de Copacabana viviam um tempo que, além da perda de Francisco Alves e de Carmem Miranda, conhecia uma onda marcadamente "existencialista", envolta em um certo pessimismo do viver e em um culto à dor, que tinha como refúgio os bares e boates pouco iluminados, as marcas da paixão na poesia e no samba-canção, tudo envolto no negro das roupas, dito ou cantado em sussurros, tendo em frente um copo de uísque e celebrando a culpa, o fracasso, os amores impossíveis e a solidão.

Em versos como "Aí a solidão vai acabar comigo", Dolores traduzia toda uma angústia de seu tempo que caracterizava a dor de amor, a procura de um amor idílico, com uma ânsia de perfeição nunca satisfeita, envolvida numa atmosfera de alegria triste e melancólica, dos olhos perdidos e marejados, de amores de contramão, paixões interditas ou impossíveis, constituindo um dos mais belos momentos da lírica musical brasileira.

Quem sou eu, letra musicada por Ribamar, talvez seu parceiro mais constante, foi feita no avião, numa viagem de Moscou a Paris. Com ele também compôs Pela rua, Idéias erradas e Se eu tiver. Conta-se que escrevia compulsivamente, mas muito se perdeu. Alguns versos foram musicados postumamente a Dolores por Ribamar, como Quem foi?, Que é que eu faço e Ternura antiga, premiada no Festival da Mais Linda Canção de Amor (1960). Carlos Lyra também musicou postumamente O negócio é amar.

Outras composições, contudo, foram cuidadosamente apuradas, é o caso de Noite do meu bemDolores também musicava suas letras, produzindo composições nas quais se pode melhor caracterizar seu estilo, caso de Castigo (1958), Noite do meu bem (1959), Fim de caso e Solidão. A melodia era guardada de memória e depois cantarolada para alguém que escrevia a música na pauta.

Seus versos têm a singeleza de uma conversa íntima, confessa:

Eu desconfio que o nosso caso
Está na hora de acabar
Há um adeus em cada gesto, em cada olhar
Mas nós não temos é coragem de falar

(Fim de caso, Dolores Duran)

denuncia:

Olhe, você vai embora
Não me quer agora, promete voltar
Hoje, você faz pirraça
E até acha graça, se me vê chorar...

(Olhe o tempo passando, Dolores Duran e E. Borges)

ou declara:

Se é por falta de adeus
Vá-se embora desde já
Se é por falta de adeus não precisa mais ficar
Seus olhos vivem dizendo o que você teima
em querer esconder...

(Se é por falta de adeus, Dolores Duran e A. C. Jobim) 

Sem recorrer à pieguice, comum em certos sambas-canções, suas composições, alimentando corações solitários e desiludidos, mostravam um sujeito amoroso além do bem e do mal ou do excesso de vida, o amor exacerbado, em geral mal-sucedido, com fortes imagens românticas, as rosas, a solidão da noite, o amante ingrato e infiel, a espera e a procura.

Versos nascidos de paixões, também relatadas na narrativa da canção, ganhavam passionalidade melódica, criando um campo sonoro propício às tensões ocasionadas pela desunião amorosa ou pelo sentimento de falta de um objeto de desejo. Assim varava as noites, curtindo a sua fossa, cantando as mágoas:

... Não me deixe chorar novamente
no tormento desta solidão
não me deixe ente todas as coisas
que foram tão nossas
dá-me a tua mão
Ai, leva-me contigo...

(Leva-me contigo, Dolores Duran),

acariciando o inatingível:

Segue o teu sonho impossível
Não tentes fugir
O que eu quero é ficar a teu lado
E te amar sempre, sempre, sem nada pedir

(Leva-me contigo, Dolores Duran)

O sucesso de Dolores Duran sempre foi mais identificado com sua trajetória de cantora de voz delicada, em grande parte o reconhecimento de suas composições foi póstumo. A noite do meu bem torna-se famosa logo após a sua morte 16, segue-se o prêmio no Festival da Mais Linda Canção de Amor, em 1960. 

Amar é sofrer

Nos anos 50, amar era sinônimo de sofrer, cantado num estilo musical em voga nesse período - o samba-cançãoDolores Duran foi uma porta-voz especial e sensível das inquietações e frustrações amorosas desse território, cantava e compunha sobre as dores de amor e dos rompimentos, descrevendo as experiências com marcas existencialistas das noites passadas nos bares e boates da Zona Sul. Seus personagens - ela mesma, no fundo - têm muito a ver com os freqüentadores de Copacabana.

As canções de Dolores Duran, cujo objetivo era cativar, entreter e seduzir, são marcadas pela força poética do cotidiano. De alguma forma, captavam representações, atitudes, hábitos, gestos, gostos que deviam ser copiados e reforçados, aceitos como conselhos. De outro lado, levavam os que as cantavam a pensar, rejeitar e/ou incorporar, enfim refletir sob sua condição e seus sentimentos, tornando-se elemento fundamental no processo de subjetivação.

Assim, as formas narrativas e dramáticas põem em cenas, instantâneos do dia-a-dia que ela resgatava com rapidez, eficácia e inspiração. O coloquial e o prosaico irrompem no poético, assumindo ora a forma de diálogo, ora a de confissão, apelo, prece, como em Noite de paz:

Dai-me, Senhor
Uma noite sem pensar
Dai-me Senhor
Uma noite bem comum
Uma só noite em que eu possa descansar
Sem esperança e sem sonho nenhum
Por uma só noite assim posso trocar
O que eu tiver de mais puro e sincero
Uma noite de paz pra não lembrar
Que eu não devia esperar e ainda espero

(Noite de paz, Dolores Duran)

Pede a Deus, em oração, que interfira no seu desespero. Em letras como esta, as imagens são extraídas do universo religioso, mas, sobretudo, sedimentam situações morais e afetivas, mediante uma moral fundada na ética do coração.

O sujeito amoroso é perseguido por dor, saudades, remorsos ou outros sentimentos sempre eternos, verdadeiros e éticos, com tendências a narrativas dramáticas flagradas no cotidiano no qual esse sujeito apaixonado esteve envolvido talvez até como personagem.

Deus me perdoe pela amargura
Pelos teus olhos que não cansam de chorar
Deus me perdoe pela tristeza
Pelos perdões que eu ouvi se perdoar
E da ternura que eu não quis
Eu me pergunto
Que foi que eu fiz
O tempo todo eu só errei
Deus me perdoe pelo amor que eu não te dei

(Deus me perdoe, Dolores Duran e E. Borges)

O amor não é colocado em xeque: é o componente afetivo ou emocional vinculado à idéia da escolha da opção, mas que pode não ser correspondido ou compreendido. O amor em Dolores Duran era um sentimento difícil, complicado, sofrido, sempre temperado de perdas, culpa e solidão, implicando em tristeza, desejo e dor.

A gente briga, diz tanta coisa que não quer dizer
Briga pensando que não vai sofrer
Que não faz mal se tudo terminar
Um belo dia a gente entende que ficou sozinha
Vem a vontade de chorar baixinho
Vem o desejo triste de voltar...

(Castigo, Dolores Duran)

Nas canções a experiência amorosa é dotada de múltiplos sentidos, e a complexidade de sentimentos e emoções cria a sensação negativa da ruína interior, com momentos agudos de sofrimento. Em Dolores Duran, o sujeito apaixonado ama intensamente sem ser amado, vivendo sob o jugo da paixão, a ela entrega o corpo e o coração, freqüentemente afastado do ente amado, se consome nas dores da ausência e do abandono.

O sentimento de ausência está conjugado à carência e à culpa, o sujeito apaixonado se recrimina pelas faltas cometidas contra o amado e se envolve em remorso; num terreno pleno de paixões tristes, que turvam a capacidade de agir e pensar, a dor emerge plena por tudo que não foi dito, feito ou desfrutado, a lembrança do abandono, do fracasso, são feridas, uma dor transfigurada afirma o amor, capturado com arte.

A dor é explicitada pelo pranto, que está associado ao martírio; na paixão, o pranto é garantia da sua sinceridade. O chorar acrescido à queixa pode provocar piedade por parte de quem ouve e com isso conquistar apoio social. A confissão e publicização da dor reafirmam a sinceridade dos sentimentos, mas também mostram as dúvidas que pairam sobre eles:

Se não é amor
Por que é que eu sinto esta vontade de chorar
Se não é amor
Por que é que eu sinto esta saudade sem parar

(O que é que eu faço, Dolores Duran e J. Ribamar)

Os sentimentos são tecidos entre dor e culpa, e elementos de repetição atuam pela imposição de imagens, com uma multiplicidade de significações simultâneas. O próprio prazer é um jogo de emoções dolorosas, sendo o prazer ausente projetado para um momento futuro e a sexualidade sublimada, levando o sujeito amoroso a estar constantemente no encalço do verdadeiro amor, na espera, na esperança de um novo amor mais puro e verdadeiro.

Ai, a solidão vai acabar comigo
Ai, eu já nem sei o que faço
O que digo
Vivendo na esperança de encontrar
Um dia um amor sem sofrimento
Vivendo para o sonho de esperar
Alguém que ponha fim ao meu tormento
Eu quero qualquer coisa verdadeira
Um amor, uma saudade, uma lágrima
Um amigo
Ai, a solidão vai acabar
Comigo

(Solidão, Dolores Duran

A trama dos sentimentos tem múltiplos aspectos, concretizada melodicamente no "estar só", "sentir-se só", situação e sentimento constantemente referenciados pela nostalgia de um tempo passado e pela experiência da saudade. Saudade em geral se faz acompanhar do sentimento de culpa, remorso e solidão. Esta solidão pode estar vinculada à dor nostálgica da distância do ser amado. A solidão é vista como elemento da essência humana, mas de forma particular vivenciado pela mulher.

A espera também remete ao exercício da solidão, se sabendo só que se poderá viver só e alimentando a esperança da chegada de um amor idílico e da aventura do encontro. Dolores Duran era uma poeta da espera, de uma espera eterna e quase sempre frustrada, a espera que traduzia a ansiedade de encontrar a felicidade. A espera, elemento recorrente nas canções, está carregada de múltiplos sentidos: pode ser a espera pelo retorno do homem, do amado infiel, a espera pelo "príncipe encantado", a espera por um amor idílico, que acabe com a solidão e o sofrimento da mulher apaixonada.

Esta ternura tão antiga
E o desencanto de esperar
Sim, eu não te amo por que quero
Ai, se eu pudesse esqueceria
Vivo, e vivo só por que te espero
Ai, esta amargura, esta agonia

(Ternura antiga, Dolores Duran e J. Ribamar)

As criações de Dolores Duran se encontram vinculadas a um potencial dialógico marcadamente presente, suas canções são diálogos cantados entre dois seres envolvidos pela paixão e dor. Diálogos em que há queixas, brigas, desabafos, confissões, pedidos de desculpas, conselhos.

Em Castigo há força lírica e melancólica de uma confissão desesperada:

A gente briga, diz tanta coisa que não quer dizer
Briga pensando que não vai sofrer
Que não faz mal se tudo terminar...
Se eu soubesse
Naquele dia o que sei agora
Eu não seria esta mulher que chora
Eu não teria perdido você

(Castigo, Dolores Duran)

Em Por causa de você, como em muitas outras canções, há uma poetização do cotidiano e das coisas simples:

Aí, você esta vendo só
Do jeito que eu fiquei, e que tudo ficou
Uma tristeza tão grande
Nas coisas mais simples
que você tocou...
Olhe meu bem, nunca mais me deixe, por favor
Somos a vida, o sonho
Nós somos o amor!

(Por causa de você, Dolores Duran e A. C. Jobim)

O enterro de Dolores Duran

As composições de Dolores Duran, marcadas pelo intimismo, caracterizaram-se em singelos e sensíveis versos que traduziam a angústia de seu tempo, a dor de amor, da solidão, da espera e da procura. A experiência amorosa aparece dotada de múltiplos sentidos, envolta na paixão, abandono, remorso e na espera quase sempre frustrada de encontrar o amor verdadeiro.

As canções apresentam contradições e ambigüidades, tensões e conflitos nas relações afetivas. As mudanças nas relações entre os gêneros são rápidas e visíveis, mas não são acompanhadas no mesmo ritmo e intensidade por todos. Ideais modernos são incorporados e os tradicionais se mantêm residualmente ativos, poderosos e simultaneamente asfixiantes e insuportáveis, contraditórios e irreconciliaveis com as novas experiências, assim, emergem tensões entre o velho e o novo, o arcaico e o moderno, o hierárquico e o igualitário, particularmente vivenciado em Copacabana.

  1. Maria Izilda Santos de Matos é doutora em história pela USP, professora titular da PUC/SP, tendo pós-doutorado na Universidade de Lion II, França. Entre suas obras destacam-se Dolores Duran: experiências boêmias em Copacabana nos anos 50 (Bertrand Brasil), Ancora de Emoções (EDUSC), Meu lar é o botequim (Cia editora Nacional).

  2. O Beco das Garrafas era assim chamado porque altas horas da madrugada, lutando insones contra o barulho dos boêmios, os vizinhos costumavam jogar garrafas no beco.

  3. As investigações nas Ciências Sociais priorizam as atividades diurnas e o mundo do trabalho, condicionando que as poucas pesquisas que focalizam a cultura boêmia acabam por interpretá-la como rejeição ao mundo do trabalho e à disciplina, identificando-a com o ócio e o não-trabalho. Para além da construção idealizada do boêmio - desvinculado de todas as normas familiares, do trabalho e das obrigações sociais -, o ser boêmio é múltiplo, não se entende aqui boemia como um todo fechado, autônomo e homogêneo. A experiência boêmia deve ser focalizada de forma relacional, complementar e interdependente à vivência do dia e à do trabalho, e não em confronto a elas. Também não se pode simplesmente identificá-la como forma de resistência, de submissão e/ou ilegítima, devendo-se observar toda a heterogeneidade de manifestações e vivências que circulam no universo da boemia.

  4. Enfrentando a resistência de Ary Barroso ao repertório estrangeiro, cantou Vereda tropical em português e espanhol, recebeu a nota máxima e dividiu o prêmio com o conjunto Os Nativos da Lua.

  5. Muito cedo ingressou no mercado de trabalho como modista, mas cantar era seu sonho e para isso enfrentou todas as dificuldades.

  6. O pseudônimo Dolores Duran flagra uma época de internacionalização do mercado musical, o domínio era das versões musicais, com destaque para os boleros que controlavam certos segmentos do mercado.

  7. A expansão do mercado fonográfico internacional, juntamente com a popularização do cinema americano, acentuou a presença da música norte-americana no Brasil, de modo que as versões faziam sucesso. O gosto latino também se expandia, e o bolero teve seus anos de ouro no final dos anos 40 e início dos 50, preparando o culto aosamba-canção.

  8. Não só a canção francesa, mas tudo que era francês era considerado de bom gosto, tanto na moda (usar o preto, "cheirando a extrato francês, vestindo ao jeito francês, comendo e dançando e fumando em francês" - Antonio Maria), como na filosofia (existencialismo), idéias políticas etc.

  9. Os artistas do rádio e do disco tinham no circo um meio fácil de se apresentar a vários públicos, tanto nos subúrbios como em cidades do interior.

  10. Nova História da Música Popular Brasileira. Dolores Duran/Tito Madi. São Paulo, Abril Cultural, 1978, 2. ed., p. 4.

  11. Alguns amigos que conviveram com Dolores afirmam que bebia muito, "como se a vida fosse escapar, um minuto adiante" (Sérgio Bittencourt). Já Marisa Gata Mansa diz: "Dolores nunca foi uma alcoólatra, como muitos pretendem. Sim, gostava de uísque e uísque ouro, sem gelo. Bebia, embora proibida pelo médico". "Dolores Duran. Uma tristeza tão grande". Última Hora, 25/10/77.

  12. Nesse período aperfeiçoam-se as técnicas de gravações, as antigas gravações cheias de chuviscos da Casa Edson e a exigência de um potencial vogal elevado (os cantores deveriam gritar durante o processo) são abandonadas e as novidades técnicas criam condições de transformação nas interpretações. O canto mais sussurrado, próprio para cantar o samba-canção de dor de cotovelo, encontra facilitações nessa nova conjuntura discográfica.

  13. Dolores Duran. Uma tristeza tão grande. Última Hora, 25/10/77.

  14. SILVA, Beatriz Coelho. "Dolores Duran, 25 anos depois a voz que o povo não esqueceu". O Globo, 24/7/84, p. 3.

  15. idem, ibidem.

  16. Ela havia gravado, cerca de um mês antes de morrer, o antológico "A noite do meu bem". Com o seu falecimento, houve um aceleramento da produção do disco e, em menos de quinze dias, a obra-prima de Dolores Duran ganhava o Brasil e fazia explodir postumamente uma cadeia de interesses e reconhecimentos". In: Antônio, João. "A solitária e jovem estrela negra". Rio de Janeiro, Tribuna da Imprensa, 8-9/10/94.

Dolores Duran foi a cronista que descreveu as experiências com marcas existencialistas das noites passadas nos bares e boates de Copacabana nos anos 1950!